sexta-feira, 23 de março de 2012

A HORTA ENCANTADA

D. Maria nasceu em Cambezes do Rio. Eram dez irmãos: três raparigas e sete rapazes. Maria era a mais velha e levava 15 anos de diferença ao mais novo. Ajudou a mãe a criar os irmãos e tinha mão pesada quando as coisas não corriam de feição.
Em meados da década de 1960, saiu da aldeia para acompanhar o irmão padre e ficou a viver em Tourém. Foi lá que conheceu aquele que viria a ser o seu marido e com quem casaria em 1967.
O Sr. José trabalhava na estiva no porto de Lisboa. Um mês depois do casamento, um acidente deixou-o dois anos no hospital. Obtida a reforma precoce, o Sr. José voltou à terra e ao trabalho na lavoura. Mas o dinheiro não chegava para criar as duas filhas e o contrabando era a solução.
Porém, a ocupação tinha os seus perigos e depois da morte de um contrabandista, D. Maria e o Sr. José decidiram que era melhor irem viver para os Estados Unidos onde D. Maria já tinha alguns dos irmãos a trabalhar:
Ele andava no contrabando, contrabando de vacas, de bezerros…E então tinham matado um homem ali em Vilar, à conta do contrabando. Uma noite fui ajudar a levar os bezerros ali a fora da aldeia e ele pôs-se por adiante e eu vim para trás. E eu estava aqui em casa a começar a comer um bocado de chouriça e de pão, já não sei o que era, e oiço dois tiros na direção onde ele ia. Ai Jesus, mataram-no! E vou a fugir às escuras, às 2 horas da manhã, por aí adiante à procura de ver alguma coisa. E nisto ouvi falar e vim espreitar aqui a estes portões lá o vi virar para cima. Já não morreste! Esta vida não presta. Vamos embora! (Maria, 9-8-2011).




Nos 18 anos vividos na zona de Boston, D. Maria e o Sr. José sempre cultivaram terra para alimentar a família. Nas casas onde viveram sempre quiseram plantar o que ia para a mesa. A terra não tinha mistério. A mãe ensinara-lhe tudo o que sabia:

A minha mãe teve sempre horta, era do que viviam. Do campo. Ajudava no trabalho da horta, quando havia as sementeiras íamos todos ajudar, plantar batatas, semear o milho, o feijão, plantar as couves, tudo. Ajudava nos trabalhos do campo e de casa. Aprendi com a minha mãe, a maior parte das coisas. E depois fui aprendendo por mim mesma. As ervas conheci pelo meu irmão. Algumas ervas já as conhecia de Cambezes e da minha mãe. A mãe usava. Eram os chás que a gente fazia, das ervas que a gente apanhava, a cidreira, abertónica, flor de carqueja, redondinha, as ervas que havia por lá, a gente apanhava-as e secava-as e depois iam-se bebendo durante o inverno. O dinheiro não havia. Não havia ordenados, não havia reformas, o dinheiro que havia era das batatas que a gente colhia, que vendia uns quilos de batatas e um bezerro, uma vaca…era o dinheiro que havia e comprava-se azeite, gás para alumiar, era luz da candeia, carvão não, carvão não comprávamos, só gás, azeite, arroz, açúcar e coisas assim, em Montalegre. (Maria, 9-8-2011)

Entre Tourém e Milford viajavam plantas e sementes. Estas rotas transnacionais permitiam também reforçar os laços não apenas com aqueles que ficavam na aldeia, mas também com os outros que tinham emigrado. As trocas da diáspora revelam a rede de parentes e amigos entre os quais circulavam, de forma generalizada, sementes e plantas. Era fácil trazer sementes e plantas para Portugal e muito mais difícil fazê-las entrar nos Estados Unidos. Para lá, o transporte de plantas e de sementes obrigava o Sr. José e a D. Maria a imaginativas estratégias de dissimulação nos controlos de fronteira:
Levei daqui um enxerto de pereira. Tinha lá vinho e tudo. Fiz uma ramada grande, plantei lá vides, fiz uma ramada grande, e até levei daqui umas videiras e ainda colhi lá vinho uns anos. Levava as sementes às vezes num bolso de um casaco por dentro, ninguém ia ver, levava muitas vezes. (José, 9-8-2011)
Sementes levei. Levei semente de couve branca, semente de couve galega. Outras sementes havia lá. De couve galega iam porque a couve de lá não dava para o caldo verde. Tinham que ir escondidas dentro de um sapato ou uma coisa qualquer. Dentro das malas. (Maria, 9-8-2011)




Hoje, a horta da casa de Tourém é um território híbrido rico em flores que se misturam com  os vegetais e com as ervas medicinais, e que juntamente com os arbustos, como o bucho e o azevinho, criam uma paisagem de formas, cores, texturas e cheiros múltiplos. Para além dos produtos hortícolas, na casa de D. Maria e do Sr. José também se colhe fruta. Semeiam-se melões e das muitas árvores, algumas enxertadas com variedades trazidas da América.
O trabalho na horta e no pomar é complementado com outras tarefas. Alguns saberes, no entanto, embora não estejam esquecidos, deixaram de se praticar. D. Maria já não faz queijo, como se fazia em casa da mãe e, embora tosquie as ovelhas, também já não fia a lã:
Tenho três grandes e três pequenas. Das grandes tiro a lã. Das pequenas não porque ainda são pequeninas. Vou matar agora para o dia 20. As outras mato-as quando calhar. A minha mãe fazia queijo e eu também fazia muito vez. Fazia-o só assim simples. Deixava-o coalhar naturalmente. Tirava a nata, fazia manteiga e do leite fazia requeijão e depois vendia-o. Fazia uns pratos e vendia e agora as mulheres dizem: Ó Maria quando fazes um queijo? Agora já não há queijos, já não vacas. Eu tinha quatro vacas, mungia o leite e fazia o queijo do leite das vacas. Das cabras não, não mungia cabras. Eu tinha duas vacas que eram de trabalho, mas para leite eram boas e vinham ali para o pátio, eu punha um banco, punha-lhe um balde com comida ou qualquer coisa e dizia ajeita-te e elas puxavam a perna para trás e eu enquanto não tirasse o leite todo elas não mexiam com a perna. Para coalhar não botava nada, deixava-o coalhar. Se era no inverno punha-o perto do fogão para apanhar calor, se era no verão, era naturalmente, para o outro dia já ficava coalhado. Agora tenho galinhas e ovelhas. Tiro a lã mas não a fabrico. (Maria, 9-8-2011)
Continua, no entanto, a tecer nas horas que lhe sobram. O tear, num dos anexos da casa, trabalha todo o ano. Nas férias, as filhas e as netas vão aprendendo a tecer. 

5 comentários:

  1. São as origens e aí se retorna sempre.

    Cordial abraço,
    mário

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  2. Obrigada Catarina e Mário.
    A história da D. Maria e do Sr. José ilustra a história coletiva deste concelho: a da migração em massa e que hoje parece ser a única solução para os mais jovens.

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  3. Há, sim senhora :)
    Aqui: http://umaovelhanoquintal.blogspot.pt/2011/08/materia-prima.html

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