quinta-feira, 9 de outubro de 2014

ALENTEJO, ALENTEJO

Um ano depois do casamento decidimos aproveitar o fim de semana e rumar ao Alentejo para visitar alguns locais que conhecíamos mal (obrigada Inês!). E para descansar. O estágio de cozinha- entrei no segundo mês desta alucinante experiência e o horário passou a ser nocturno - tem-me deixado exausta. Pela quantidade de informação a reter - sobretudo aquela que diz respeito à organização das múltiplas tarefas a executar - mas, acima de tudo, pelo esforço físico exigido. A brigada de cozinha é muito jovem (basicamente tenho o dobro da idade de parte dos elementos da equipa) e tem uma dinâmica e uma energia que eu tinha....há 20 anos! Tenho aprendido imenso com todos eles, é uma experiência fantástica, mas os dias de pausa sabem-me que nem ginjas! (bom, mais tâmaras que ginjas!).
Ficámos em Arraiolos e aproveitámos para conhecer um pouco melhor o concelho e visitar, também, Évora, que só conhecíamos de passagem. Ao contrário da oferta gastronómica (medíocre nuns casos, mediana noutros), encontrei projectos culturais diversos que me surpreenderam. 


O Centro Interpretativo do Mundo Rural, em Vimieiro, concelho de Arraiolos, é um exemplo disso. Existe uma exposição permanente, que aborda temas como a desmoita e queimadas, o alqueive, a cozinha, do montado ao fumeiro, da ovelha ao queijo.  Está também em exibição uma exposição temporária, "A Fotografia e as Gentes", com imagens produzidas ao longo do século XX e que retratam o quotidiano e os tempos de excepção da comunidade: o casamento, a comensalidade, as sortes, a tosquia das ovelhas, o trabalho feminino, os tempos de pausa no trabalho, estes, bem ilustrados na fantástica fotografia de um grupo de mais de 20 mulheres a fazer malha. A entrada é livre e o catálogo da exposição permanente custa uns módicos 2,50 euros. Na museografia, tal como escrevi no livro de visitas, gostaria, no entanto, de poder "escutar" em discurso directo as diversas vozes da comunidade. De parabéns está a antropóloga e museóloga Carla Barroseiro, da Câmara Municipal de Arraiolos. A prova de que, neste tipo de projectos, o trabalho do antropólogo é fundamental. O que me faz recordar um episódio ocorrido há uns dois anos quando, em visita a um museu de um concelho do centro litoral do país, o responsável da empresa que tinha desenhado a museografia desse museu, me pediu a opinião sobre a exposição permanente. Quando lhe referi que faltavam, por exemplo, núcleos dedicados aos ofícios tradicionais do território respondeu-me que não tinham encontrado informação relevante na bibliografia...


Como era expectável demorei-me mais nos núcleos dedicados à alimentação do Centro Interpretativo, nomeadamente no espaço onde estavam expostos o mobiliário, assim como os equipamentos e instrumentos característicos das cozinhas daquela zona. Uma das peças que mais me chamou a atenção foi a coadora, que se pode ver retratada numa das fotografias (década de 1950) da exposição acima referida. 

 (Exposição "A Fotografia e as Gentes" do Centro Interpretativo do Mundo Rural)

Tal como refere o catálogo da exposição permanente, "Quando os cântaros com o leite chegavam à rouparia estava já um tacho de grandes dimensões com água ao lume, onde eram colocados um banho-maria, sendo o leite mexido com uma cana até estar morno. Nesse momento era retirado do lume e vertido para a coadora, a qual tinha sete panos para não deixar passar as gorduras e as impurezas e assim clarear o leite. O primeiro pano era o mais grosso, em estamenha, e os restantes seis, mais finos, em estopa de linho. Debaixo da coadora estava um asado, para onde o leite era derramado". 


Mas é possível fazer outras interpretações da cultura local para além daquelas que têm o selo institucional. Mesmo à entrada de Arraiolos, visitámos a Oficina da Terra, um projecto do mestre Tiago Cabeço. Chegámos em cima da hora do fecho e ainda hesitámos face ao preço do bilhete (5 euros por adulto) e por aquilo que, visto da entrada, nos parecia pouco apelativo. Não podíamos estar mais equivocados. Tiago Cabeça tem o humor e a arte na ponta dos dedos e cada conjunto escultórico é um deleite. Um homem crescido com uma alma de criança. Não é possível não estar o tempo todo a sorrir enquanto se visita a Oficina da Terra.

 (Leitaria - Oficina da Terra)

A viagem teria sido perfeita se os lugares de comida fossem tão bons quanto o resto. Começou logo mal no Zoo de Lavre. Uma sopa quente de verduras servida numa tigela de plástico e a saber a coisa velha e meio azeda. Valeram-me as castanhas do Maranhão que levava no bolso. Em Arraiolos fomos, na primeira noite, a um dos restaurantes típicos que nos recomendaram na Pousada. Ainda era cedo, não estava a casa cheia mas já não havia cogumelos. Não há problema, escolhem-se os pimentos e os espargos mexidos com ovos. Mas afinal os espargos não são verdes. Não faz mal. São brancos. E de frasco. Não me importo de ir a restaurantes que se vendem como típicos e comer coisas congeladas. Gosto é de ser informada antes. Sobre isso e sobre o facto de estar a consumir comida enlatada. Que, por norma, evito. Sobretudo aquela que vem empestada com estabilizantes e conservantes. Percebo que um restaurante deste género opte por manter uma certa consistência da carta ao longo do ano. Percebo a opção, as suas justificações - expectativas dos clientes, concorrência, etc. Não percebo é que não se informe logo o cliente. E que se pague como se a comida não fosse congelada e enlatada. Os espargos brancos de frasco não estavam maus. Mas na carta devia estar escrito cebola com ovos mexidos porque havia mais cebola que espargos no prato. Mate ficou bastante satisfeito com as migas de espargos verdes e com a sobremesa de inspiração conventual.
No segundo dia, almoço em Évora. Restaurante perto da Sé, com pequena esplanada, espaço simpático. Uma salada de beringela, morangos, rúcula e requeijão muito bem conseguida (as beringelas estavam assadas na perfeição). A falhar o sumo de laranja (mais gelo do que sumo), a muxama (não foi explicado a mate que se tratava de uma salada e não de um prato principal e as fatias de laranja estavam secas), e uma das sobremesas (um bolo de camadas duríssimo, com um recheio miserável de ovos moles). Não cobraram o bolo e o atendimento foi muito simpático. Aliás, o atendimento foi sempre simpático em todo o lado.

(Exposição "A Fotografia e as Gentes" do Centro Interpretativo do Mundo Rural - 1958)


Jantar do segundo dia. Desgraça absoluta. Trabalho numa cozinha de um hotel que está equipada, entre outros, com Ronner (para quem não sabe, permite cozinhar comida em vácuo a baixa temperatura), abatedor (possibilita, por exemplo, o congelamento rápido dos alimentos), máquina de vácuo, forno onde é possível esterilizar a comida através do cozimento a vapor). Basicamente, a cozinha tem os equipamentos que, hoje em dia, são incontornáveis quando se trata de um negócio de comida de uma certa dimensão. São equipamentos que, somados, custam uns bons milhares de euros e que permitem ter a comida conservada nas melhores condições, servir sem que o cliente fique uma eternidade de tempo à espera, cozinhar os alimentos sem exagerar na quantidade de sal e, entre muitas outras coisas, apresentar comida sem sabor a requentado.
Com isto não estou a dizer, obviamente, que as outras cozinhas, sem esses equipamentos, não produzam comida de qualidade. Produzem, mas os procedimentos são outros. A escala é outra, e as opções, em termos de produto final, são também diversas. Nem sequer estou a comparar estes dois universos. São realidades distintas. Uma das melhores experiências gastronómicas que tive foi na Casa de Souto Velho, da extinta(?) Rede de Tabernas do Alto Tâmega. Eufrásia, uma das mulheres que entrevistei na minha pesquisa de doutoramento, faz comidas mais do que deliciosas. Não cozinha a vácuo, não usa Ronner, mas faz o melhor leite creme, as melhores compotas e a melhor massa de folar que alguma vez provei. Como se diz por lá, a comida da D. Eufrásia sabe-me pela vida!
Quando se vai a um restaurante de um hotel de quatro estrelas , as expectativas são outras. Não se espera estar na sala de jantar e começar a salivar com o cheirinho de boa comida que vem da cozinha. Não se vai à espera de comer pão feito no forno de lenha (embora haja hotéis que compram pão deste tipo para confeccionar comidas específicas como as migas). Mas espera-se que a mesma não saiba a comida descongelada, requentada e velha. Que as batatas não saibam a mofo, que o arroz não pareça ter uma semana e que os papos de anjo não estejam tão duros quanto uma pedra. Que o ensopado de legumes com molho de coco não pareça uma água suja com vegetais deslavados e cortados de forma desleixada. Especialmente quando a cozinha desse hotel se vende como servindo comida típica portuguesa/regional. Por vezes, acho que o modelo das Cesarine em Itália poderia funcionar tão bem em Portugal...se não fosse o Estado comilão e controlador que, em vez de incentivar, aniquila. 

(Oficina da Terra)

2 comentários:

  1. Feliz aniversário de casamento :)))))) Nunca fui ao Alentejo, mas tenho muita vontade de ir, quem sabe no final da próxima Primavera (sempre penso no Alentejo com calor, mas ando meio fraquinha para calorões :)))))).
    Esta exposição fotográfica parece mesmo muito legal, adoraria ter visto, assim como as demais. E é óbvio que a parte culinária é a que vai chamá-la com mais insistência :)
    É mesmo muito chato esperar uma comida caseira e virem coisas de lata ou de uma semana de idade. Como disseste, não dá para comparar as infra-estruturas dos dois tipos de estabelecimento, são escalas, propostas e recursos distintos. Mas quando algo vem taxado de "tradicional", o que se espera é um certo frescor. Eu parei de frequentar um indiano do meu bairro em Bristol por causa disso. Os funcionários eram uns queridos, muito simpáticos, mas chegou uma altura em que o arroz pilau sempre vinha velho, passado no óleo velho também para ser requentado. Arroz, a sério? Um dos ingredientes mais baratos e fáceis de preparar, quando se usa atalhos desse tipo é porque o restante não vai bem. Com um tailandês takeaway em que sempre pedíamos comida, a mesma coisa - óleo rançoso (sou super sensível a essas coisas). Óleo, eu ia ao cash and carry, sei que comprar coisas como óleo e arroz a granel é o que menos sai caro. Porém, muito elegante da tua parte não mencionar os nomes dos restaurantes, nunca se sabe o porque de certas coisas. Acho que viste a minha experiência na casa de chá de Serralves - não é um café barato, por que servir uma tarte velha? Eu percebo muito isso em restaurantes aqui e no Reino Unido - e, imagino, em todos os lugares! -, este tratamento comercial da gastronomia que acha que, em nome do lucro fácil - ou do desespero de um negócio que vai mal -, é aceitável enganar os clientes - e me irrita ainda mais em propostas contemporâneas, nos restaurantes da moda. Só não percebo porque só o mate ganhou espargos verdes :p
    Beijinhos, boa sorte com a próxima fase do estágio!

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  2. Olá Dani :)
    Obrigada! A exposição fotográfica ainda vai estar em exibição um tempo. Talvez tenhas oportunidade de visitar. Vale mesmo muito a pena. Tal como a exposição permanente.
    O que vim a saber sobre alguma crítica gastronómica nos últimos tempos deixou-me perplexa. Há uns anos, e se a memória não me trai, li uma entrevista do José Quitério, referindo que enquanto fez crítica gastronómica, nunca se identificou nos restaurantes onde ia e nunca deixou de pagar as refeições que consumiu. Agora parece que a moda é ir aos restaurantes, comer e, no fim, dizer que se é crítico e esperar que a conta não seja cobrada. Extraordinário, não?!
    Temos uma cultura de engano do cliente. Engano na qualidade dos ingredientes, nas quantidades servidas. Quando encontramos negócios sérios, é uma surpresa. O contrário é que devia ser normal!
    bjs

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Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
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