sexta-feira, 29 de outubro de 2010

ANTELÓQUIO

Com excepção das filhós, manjar de Natal na casa dos avós maternos, sou incapaz de discorrer sobre a genealogia de qualquer outra comida de festa da minha infância. As filhós são (eram?) das Donas, ali no Fundão. Tinham lugar de nascimento e mesmo que fossem feitas na cozinha da avó Susana em Albergaria-a-Velha, eram feitas a preceito. Por isso, eram das Donas.

As fotografias antigas, que me mostram empoleirada num banco e quase, quase em cima da mesa da cozinha a espreitar por debaixo dos cobertores que aquentavam a massa lêveda e fofinha, ajudam-me a reconstruir recordações.

A avó Susana, na minha cabeça de criança, tinha nome de menina e mãos de velhinha. Invariavelmente, nos dias 22 ou 23 de dezembro, reunia as mãos das filhas, e, mais tarde, das netas, para fazer as filhós. Em cima da mesa da cozinha, juntava os ingredientes, pesava quantidades e mexia a massa nos minutos iniciais. Depois, delegava o trabalho nas mãos da minha tia, que tinha força suficiente para prosseguir a tarefa de amassamento por mais uma boa hora. Quando nós chegávamos lá a casa, já a massa estava a levedar ou a acabar de ser batida. Invariavelmente, a minha tia tinha as mangas arregaçadas e estava cansada. Invariavelmente, a minha mãe declarava que não tinha força suficiente para cumprir a tarefa com a dignidade que a mesma impunha. O tempo que a massa levava a levedar era vivido com grande impaciência. Da minha parte, claro. Chegada a hora de fritar a massa, começava o corre-corre para cortar as filhós, tarefa executada pela avó e pela tia, enquanto à minha mãe cabia virá-las no panelão fumegante de azeite e assegurar que não se queimavam e ficavam exatamente daquela cor que ainda hoje não sei definir muito bem, mas que me parece próxima de uma laranja torrada. Todos os anos, no final do dia, a minha mãe declarava com ar solene que cheirava a fritos. Um Natal decidi quebrar a lógica geracional da sucessão das tarefas. Olhar já não me bastava e reivindiquei o meu lugar na hierarquia da confeção das filhós. Ninguém me autorizou a avançar, mas eu achei que pegar num pedaço de massa, estendê-la com o rolo e dar-lhe duas cortadelas com o carreto, era tão fácil como moldar um pedaço de plasticina. Devo ter aproveitado um momento de distração do mulherio. Recordo um balbuciar de protestos da avó, quando se deu conta do atrevimento da neta mais nova. Mas devo ter feito uma filhó tão perfeitinha que se calaram nesse ano e nos seguintes.

Quando muitos anos mais tarde a minha avó morreu, a minha mãe passou a fazer as filhós com a ajuda da batedora da Kenwood. Protestei, em vão, contra a modernice. Argumentei que as filhós perderiam sabor e textura. Mas a mãe declarou que não tinha força nos braços e pronto. Ofereci os meus. Recusou e eu amuei. Estas filhós de agora já não me sabem ao mesmo. Não sei se é por causa da batedora ou porque já não está o mulherio de volta da mesa. Também não sei se é porque a avó já morreu, porque o avô também já partiu ou porque também o meu pai se foi. Já morreu tanta gente. Já nem existe a casa da avó. E eu já nem me lembro do cheiro da casa da avó. Só me lembro do cheiro das filhós porque as reatualizo anualmente.

Mas são as filhós, ainda que desvirtuadas em sabor e em textura, que me ancoram ao território de alguns dos meus antepassados. Um território a que eu também pertenço, embora seja uma pertença longínqua, apenas lembrada de tempos a tempos. As filhós são das Donas. Eu sei que também são de muitos outros lugares. Mas, para mim, são das Donas. São daquela aldeia onde a minha avó nasceu e que eu visitava de vez em quando nas férias e onde fiz a primeira pesquisa etnográfica sobre comida. Pertencem à infância da minha avó e também devem ter pertencido à infância da avó dela. Como pertenceram à minha.

As filhós e os bolos de azeite, também das Donas, representam a última fronteira antes da total orfandade de lugar. Ao contrário das mulheres protagonistas da minha pesquisa, nos meus dias nomeados tanto me serve o sushi em versão vegan, como um biryani de legumes a recordar-me os Hare Krishna ou uns chicharros com couve segada como aprendi a fazer na aldeia de Barreiros, em Valpaços. A minha comida é de muitos lugares. E eu sinto que não sou de lugar nenhum. Já na adolescência, as comidas das festas de aniversário – rissóis encomendados, bolo de aniversário comprado e sanduíches, bolos, mousses e bolachinhas feitas pela mãe – eram comidas sem história. Assim, à distância de muitos anos, parece que já naquela altura havia uma certa orfandade de lugar na comida que se comia em casa. Eram só comida de casa. Mas parecia que a casa não era de lugar nenhum.

A conversão ao vegetarianismo, na adolescência, exacerbou a orfandade de lugar das comidas. Na altura, nem família, nem colegas entenderam a conversão. Mas os pais acabaram por deixar de comer carne e quando as amigas da adolescência se juntam, cozinham-se pizzas de legumes, lasanhas de espinafres, tartes de abobrinhas e devoram-se gelados. Eu prefiro cozinhar caril de lentilhas e pão sem fermento. Chamo-lhe pão árabe para as impressionar. Mas também lhe posso chamar chapati . Na verdade, posso chamar-lhe qualquer coisa. Situo-me numa comunidade global de vegetarianos, às vezes crudívoros. Tenho a mania das comidas sem ‘Es’, de pensar global e fazer de conta que como local, dos alimentos orgânicos, das comidas com pedigree, genuínas, de preferência não embaladas em plástico. Mas não troco receitas na internet, nem me inscrevi em nenhum grupo de gente que come verde. Os fundamentalismos duram-me pouco. Sou uma insurrecta, por natureza. De modo que, produzir uma etnografia da comida, obrigou-me a igualar os níveis da teimosia aos da insurreição.
 
Escrevo, agora, as notas finais desta aventura...até já...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

CITANDO O ORIENTADOR

"EXCELENTE". A referência é ao Capítulo 13. E foi com maiúsculas e tudo. Agora vou ali babar-me e já volto.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A VERDADEIRA HISTÓRIA

Este post já era para ter sido escrito há muito tempo. Na verdade, deveria ter sido escrito como post inaugural, enterrados que estavam os Brincos de Chocolate. Fui adiando, por preguiça, porque não me apetecia justificar a minha mudança radical de vida e porque sim.
Poucas pessoas, mesmo muito poucas pessoas compreenderam a decisão de me despedir do ISCSP, numa altura em que entrava na fase final de doutoramento, quando ainda me restavam dois anos para terminar o prazo para entrega da tese e tendo garantida a contratação como professora auxiliar assim que o grau fosse obtido. O que, na prática, significava passar a ganhar o dobro do que ganho agora. Mais, até.
Ouvi palavras amargas "ainda hei-de estar aqui para ver o teu arrependimento", vi olhares que achavam que a decisão resultava da minha incapacidade em terminar de escrever a tese e adivinhei pensamentos do tipo "está deprimida, coitada...".
Pois, azar. Engaram-se. Na verdade, quem me conhece sabe que eu não deixo as coisas a meio e que a tese, mesmo estando fora da carreira académica, seria para terminar, como aliás, está prestes a acontecer. Quem me conhece sabe, também, que sou uma mula teimosa que demoro a decidir, mas quando decido nunca mais volto atrás. E é bom que não se esqueçam disso, ó gente...
Sim, é verdade que a passagem por Trás-os-Montes me ajudou a tomar uma decisão que ia adiando desde há muito. Também é verdade que o meu orientador, Xerardo Pereiro, me mostrou outras formas de fazer antropologia e que hoje são estruturantes na minha maneira de estar e de ver o mundo e de me relacionar com as outras pessoas e com a investigação. Ele também é devedor desta mudança. Mas suspeito que não faz ideia... :)
Se foi difícil? Foi, pois. Em junho do ano passado já a decisão se tornava inevitável e em setembro, com o início das aulas, eu decidi que chegava. Em dezembro do ano passado entreguei a minha carta de demissão, bai-bai, e em março saía da faculdade.
Poupei durante um ano e privei-me dos luxos a que estava habituada para aguentar o embate. Os últimos meses antes da saída foram de ansiedade continuada. Até achei que andava à beira de uma síncope cardíaca.
Voltei para a Figueira. Em março, a minha casa ainda estava em obras e voltar a viver com a mãe foi difícil, foi sim senhora. Duas galinhas alfa na mesma capoeira não se entendem muito bem :) Mas a minha mãe está sempre ali para mim. E também ela me proporcionou a segurança que necessitava.
Nunca me senti desempregada e nunca disse que estava desempregada. Fechei-me em casa a escrever a tese e o trabalho ajudou-me a esquecer o facto de estar sem rendimentos. Contava, apenas, voltar ao ativo por esta altura, para ter tempo de terminar a tese com calma. Enganei-me. Em julho recebia um convite para ir trabalhar para o Museu de Arte Popular. Já tinha passado por lá há 15 anos, quando saída da faculade, fiz um estágio voluntário.
Ganho muito menos do que ganhava e tenho menos regalias sociais. Paciência. São escolhas. Mas vou todos os dias feliz para o trabalho e não deprimida como sucedia. Adoro o que faço e acredito no projeto, apesar de todas as dificuldades que aí vêm. Creio que com poucos recursos e imaginação se consegue fazer um museu do povo e para o povo. Porque é para isso que os museus existem.
Para aqueles que acharam que eu ia sucumbir, vão à merda, sim? Para os outros que sempre acreditaram em mim, como a minha querida Irene com quem almocei ontem, obrigada.
E agora com licença que vou fechar mais um capítulo.

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Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
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