Costumo dizer, meio a brincar, que escrever sobre a comida não é apenas uma vingança primária porque não segui a carreira de cozinheira ou de padeira. Escrever sobre a comida foi uma das formas de registo que encontrei para contrariar a sua efémera propriedade, uma materialidade que teima em desaparecer tão rapidamente. O exercício da fotografia, embora mais recente, veio complementar o primeiro formato de registo. Admito que me inquieta o caráter transitório da comida na mesma proporção que me fascinam os sabores, os odores, as texturas que a compõem e as histórias de vida das pessoas que a preparam e a degustam. Mas esta é somente parte da resposta. Existe, também, um confesso voyeurismo que se exercita sempre que espero vez na fila do supermercado e observo os carrinhos e os cestos de quem está à minha frente ou ao meu lado. O que comem estas pessoas? Que escolhas alimentares são ativadas num contexto de abundância e diversidade? Como se gerem as escalas locais e globais nesse processo de eleição e que papel desempenha, nessa gestão, o lugar que habitam? Que representações fazem essas pessoas daquilo que comem? E que histórias de vida sustentam essas escolhas? Porque, num jogo de espelhos, são também essas as questões que coloco, uma e outra vez, a mim mesma. E construo paisagens alimentares, imaginadas, à escala das casas de cada uma daquelas pessoas.Mais tarde, em 1996, num estágio voluntário efetuado no Museu de Arte Popular, elaborei um conjunto de fichas-guia destinadas a serem utilizadas pelos alunos do 1º e do 2º ciclos na visita a esse espaço museológico. Algumas dessas fichas focavam a utilização de objetos ligados à doçaria regional. Este foi, também, o primeiro projeto em que comida e museologia se associavam. Num museu que, na altura, não tinha qualquer tipo de serviço educativo a funcionar, assumir a responsabilidade de ser eu a comprar os materiais como cartolinas, lápis de cor, assim como alguns objetos para os miúdos poderem mexer e experimentar, deu-me a certeza de que um guia pode fazer toda a diferença na experiência museal. E também que com escassos recursos se pode fazer muita coisa.
No 2º ano da licenciatura em Antropologia fiz a primeira incursão na etnografia da comida. Um pequeno texto sobre as filhós e o respetivo registo fotográfico. Agora, olhando para trás, concluo que à época já tinha esta mania de fotografar comida. Mas a academia nunca incentivou os estudos neste domínio. Demasiado preconceito sobre uma temática considerada menor.
Posteriormente, já a frequentar o Mestrado em Ciências Antropológicas no ISCSP, procurei desenvolver, no âmbito das várias disciplinas, estudos que se enquadrassem no domínio da temática da comida. Um dos trabalhos que mais gostei de fazer foi no âmbito da disciplina de Tecnologias Tradicionais Peninsulares, na qual desenvolvi uma pesquisa na área da tecnologia culinária sobre os bolos de azeite, junto da última padeira da aldeia das Donas, no concelho do Fundão.
Donas, aldeia onde nasceu a minha avó materna, sempre fez parte do programa das férias da Páscoa da minha infância e da adolescência. Viajavam as mulheres da família (avó, mãe, tia, prima e a mais nova que era eu) na linha da Beira Baixa, para lá carregadas de sacos vazios, de volta, transportando os enormes bolos de azeite. Mas havia sempre espaço para os pequenos bolos doces: esquecidos, cavacas, biscoitos e farta-brutos. Voltar às Donas, mais tarde, já de carro, com máquina fotográfica e caderno de campo, foi uma forma de me reencontrar com parte das minhas origens e de desvendar os segredos da preparação dos bolos de azeite pela última padeira da aldeia, hoje afastada do ofício pela idade e pela doença. Embora não fosse deliberado, acabei por assumir como projeto a preservação da memória desta mulher.
Um outro trabalho, no mestrado, que me deu um gozo tremendo fazer foi um projeto de uma maleta pedagógica sobre a alimentação dos Bijagós da Guiné-Bissau. Parti das fichas da coleção dos objetos ligados à preparação e ao consumo de comida existentes no Museu Nacional de Etnologia, para elaborar um conjunto de cadernos, relacionados com diferentes disciplinas do 2º ciclo.
Porém, foi o estudo da cultura culinária em contexto religioso, mais especificamente as representações socioculturais nos domínios da tecnologia culinária e dos rituais de comensalidade no Templo de Lisboa da Associação Internacional para a Consciência de Krishna, que viria a representar o primeiro grande investimento teórico e etnográfico nesta área: a dissertação de mestrado.
Os projetos de teor museológico seriam posteriormente retomados, com a coordenação editorial e a produção de conteúdos pedagógicos para um kit de apoio a uma exposição sobre o ciclo do pão, no Moinho de Alhos Vedros, na Moita.
Com o doutoramento, o meu trabalho de fundo no âmbito da comida, procurei entender de que modo é que as mulheres, nas suas experiências alimentares, privadas e públicas, quotidianas e festivas, expressam diferentes versões de uma cultura alimentar, e revelam a articulação de escalas locais e globais na construção de Chaves enquanto pasiagem alimentar plural.
Nesse sentido, procurei identificar e analisar diferentes versões da cultura alimentar através das narrativas de múltiplas experiências alimentares ilustradas por práticas, conhecimentos, processos, valores, crenças e representações do passado e do presente e capturar e esclarecer instrumentos, processos e estratégias de patrimonialização, identificando comidas, atores e eventos, e analisando criticamente a construção de memórias centrais e periféricas.
Confesso que após a entrega da tese, estava com uma indigestão de comida. E acreditava que não iria debruçar-me tão cedo sobre a temática. Mas é inevitável. Já quando estive no MAP, iniciei o estudo da coleção de pintadeiras pertencentes, em grande parte, a Francisco Lage e Sebastião Pessanha. Infelizmente, não pude dar continuidade ao mesmo. Talvez um dia o possa concretizar. E neste projeto em Montalegre, o património alimentar é um dos temas que estou a tratar, mais especificamente o mel, as filhós e os bastidores da Feira do Fumeiro.
É, naturalmente, uma área em que me sinto mais confortável. Busco, sobretudo, as interpretações que as pessoas fazem acerca do que cozinham e comem. Das histórias em torno dos instrumentos e equipamentos que usam. Porque creio, também, que essas histórias em muito valorizam esses instrumentos e equipamentos quando os mesmos são expostos em contexto museológico.
(Taça com milho-miúdo amarelo. Pólo de Salto do Ecomuseu de Barroso)
Um dos maiores desafios que este projeto me coloca tem a ver com o facto de abarcar um conjunto de temáticas sobre as quais não tenho investimentos prévios. Se, por um lado, a quantidade de informação nova pode ser avassaladora, por outro, obriga-me a um nível de alerta muito maior do que aquele que tenho em relação à comida. O que pode ser bastante vantajoso!
O tema do traje, concretizado na capa/capucha de burel, no avental de costas e na croça, tem-me colocado enormes desafios. Mas, confesso, que é um tema verdadeiramente apaixonante. Aguardo, com alguma ansiedade, o tempo mais frio para poder fotografar as mulheres usando a capa de burel nos seus afazeres diários e os homens usando as croças para guardar o gado.
(De cima para baixo: máquina de costura, lançadeiras e tear de franja. Pólo de Salto do Ecomuseu de Barroso)
Também me fascina esta redescoberta constante de pistas. No caso da D. Benta, como já havia filmagens sobre a tosquia e lavagem da lã (ao visualizá-las convenci-me que toda a lã era lavada após a tosquia e as entrevistas que já fiz a Benta vieram revelar que até é conveniente não proceder a essa lavagem), o objetivo seria o de recolher imagens em torno do fiar e dos trabalhos com as agulhas. Depois, acabou por se concluir que, para além disso, a capa ou capucha, seria central na pesquisa. Para o inverno estão prometidos serões de aprendizagem. Mas a D. Benta já me chantageou! Diz que só me ensina a fiar e a fazer meia se eu comer os caldos de couve temperados com carne que ela prepara! Diz que estou muito magra e branquinha e que tenho de ganhar gordura para aguentar o frio :)
(Dobadoura e sarilho. Pólo de Salto do Ecomuseu de Barroso)
Mesmo os temas que estão mais longe dos meus interesses pessoais, como o trabalho dos ferreiros, têm proporcionado momentos de descoberta inesquecíveis. Porque o terreno é isso mesmo: uma descoberta constante.
(A malhar o ferro. Ferraria do sr. Fernando)
(Afiar um foicinho no esmeril. Ferraria do sr. Fernando)