No Museu dos Barcos na Praia de Mira guardam-se as memórias de alguns dos homens que andaram na pesca do bacalhau. Mestre Aperino Gil e mestre João Facão, recordam os tempos passados nos barcos que percorriam os mares da Terra Nova e da Gronelândia. Ir para a pesca do bacalhau era ir para a outra guerra, uma guerra travada no mar em condições adversas:
Fui com 19 anos e nunca tinha andado ao mar. Fui para
fugir à tropa. Até estava mobilizado para Angola e quem ia para o bacalhau não
ia para a tropa. Mas tinha de lá andar seis anos. O meu avô foi arrais da costa
quase 50 anos, mas eu nunca tinha andado ao mar, porque o meu pai era
construtor e eu trabalhava com ele. Eu não sabia para onde ia, mas sabia que não ia para uma
coisa boa. Porque mobilizado para Angola e deixarem-me ir para o bacalhau, era
porque não era uma coisa boa! Mas a gente vai-se habituando, vamos de verde e naqueles
primeiros dias e com aquelas botas de cabedal dentro de um bote…é que estes
botes são muito falsos. Vazios são muito falsos. Quando têm lastro fica
assente, mas sem peixe é muito alto e nós lá dentro, ainda com a ondulação do mar,
até a gente se habituar àquilo é um problema. Enjoar é só à saída de Lisboa.
Havia muitos pescadores que sofriam mais do que eu. Os pescadores que andavam a apanhar o bacalhau é que tinham de preparar o bacalhau até ao fim! Até à salga. A escalar o bacalhau até às 2h da manhã e às 4h já estávamos a pé. A gente não chegava a descansar. Sempre com sol, porque no pólo norte, na altura em que a gente ia, era sempre dia. Eram sempre temperaturas negativas.(Mestre Aperino Gil, 1-12-2012)
Durante seis meses, pescava-se bacalhau e comia-se bacalhau cinco vezes por semana. Não era apenas a monotonia da alimentação que marcava as refeições tomadas no navio e nos dóris:
Os bifes de bacalhau que eles nos davam… seis meses, bacalhau
cozido de água e sal. E as batatas, agarravam um saco de batatas, cortavam o
fio, não eram lavadas nem nada, bota para dentro da panela, a água ficava logo
vermelha! O bacalhau que fritavam hoje só o davam aí por dois ou três dias. Nunca o davam fresco. Para não terem trabalho! Eu em vez de levar uma, duas ou três postas no foquim para comer lá fora, não levava nenhum porque já estava cheia de bolor! O pão que coziam hoje só o davam por três ou quatro dias. Rijo! Que era para a gente em vez de levar três ou quatro pãezinhos, levar só um. O comer que eu comia a bordo de dóri, era um punhado de azeitonas e um termo de café. E levava um pãozito rijo para comer com as azeitonas. (Mestre Aperino Gil)
Comíamos bacalhau desde que saíamos de Lisboa até chegar. A gente chegava à mesa…ai, isto está aqui outra vez! Só davam carne à quinta feira e ao domingo. Era uma carne salgada que vinha da Argentina em barricas. Ficava de molho à quarta feira ou ao sábado e à quinta feira ou ao domingo íamos comê-la. Só aí é que provava à carne. Só aí é que sabíamos que era quinta feira ou domingo. Nos outros dias era só bacalhau. Bacalhau cozido, bacalhau assado, bacalhau frito. (No dóri a gente comia um bocado de pão, por vezes duro, uma posta de bacalhau frito e um termo de café e andava-se ali 12 horas, por vezes 13 ou 14.Mestre João Facão)
A bordo dos navios, a comida servia também como elemento diferenciador entre os oficiais e os pescadores. Por vezes, os homens arriscavam e roubavam géneros que escondiam debaixo dos colchões, como fazia João Facão. E assim conseguiam, nas camaratas, cozinhar caldeiradas e tornar o tempo de mar mais curto. Um tempo marcado em terra pelo choro e pelo luto das mulheres:
Os oficiais comiam uma boa salada de tomate, a boa salada
de alface, tudo o que era do bom e do melhor. Todo o pessoal que trabalhava a
bordo, que era o pescador que ganhava para eles, porque eles ganhavam consoante
aquilo que a gente apanhasse. A alimentação deles era tudo do melhor que havia.
O tempo que andavam no bacalhau, comiam melhor do que em casa. Eram leitões, era
carne de vaca da melhor, era o melhor que havia. Levavam de Lisboa e carregavam
nos portos. E nós a vermos da mesma cozinha a ver sair o comer para a ré, para
os oficiais e a nós era sempre a mesma cozido com batatas que não eram lavadas
e as vitaminas era um comprimido chamado Polivita, do tamanho da moeda de um
euro, vermelho e isso era a salada que nos davam era isso. Para eles era boa
alface, bom tomate e o desgraçado do pescador….Mas se disséssemos assim “Sr. Capitão, a comida não está
em condições” éramos logo ameaçados, recebíamos logo ordem de prisão.(Mestre Aperino Gil)
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