quarta-feira, 9 de novembro de 2011

TRAVASSOS DO RIO - HISTÓRIAS DE FILHOSES DE VACA PARIDA

Tenho esta vocação voyeurista para carrapitos. A D. Maria dos Anjos estava mesmo sentada à minha frente e eu contemplava-lhe as voltas do cabelo grisalho a lembrar-me o da minha avó Jesuína e o meu há dois anos quando era muito, muito comprido. Depois, distraída, contei carrapitos e cabelos cortados curtos e, debaixo dos lenços, tentei adivinhar quantos pertenceriam à primeira categoria e quantos fariam parte da segunda.
Já à minha beira, a D. Maria dos Anjos, elogiado o carrapito, contou-me que antes de entrar no avião para a Suíça, a máquina apitou. Eram os ganchos de metal no cabelo que lhe seguravam as muitas voltas grisalhas.
Falámos das filhoses. Das que se faziam com o leite das vacas paridas. Nos dois, três primeiros dias, não se aproveitava o leite.
Depois, sim. Um leite gordo, cheio de nata que tornava as filhoses mais saborosas e fáceis de virar na sertã. Nem era preciso juntar ovos, porque os ovos juntam-se para lidar mais facilmente com a massa na sertã.
A farinha milha, que se mói ainda nos moinhos de Travassos do Rio, juntava-se ao leite, mais uma pitada de sal para dar sabor. Uma farinha milha bem moída para fazer filhoses fininhas.
Mário Bento, que se juntou à conversa e com quem eu já me tinha cruzado nas ruas da aldeia há uns meses, também comia as filhoses de leite de vaca parida feitas pela mãe.
Agora, as filhoses fazem-se com farinha triga e leite de pacote comprado no supermercado. Não ficam tão boas e juntam-se uns ovos para se lidar melhor com a massa.
Bastou fazer mais algumas perguntas sobre mungir para 15 minutos depois estarmos a caminho do lameiro onde estavam as onze vacas à espera de recolher às cortes.



E depois acontecem coisas tão extraordinárias como o sr. Mário Bento estar no lameiro a chamar as vacas e ao mesmo tempo a telefonar à mulher para ter uma cafeteira pronta porque quando chegasse queria mostrar às meninas como se faz para tirar o leite às vacas. Vê, não custa nada, dizia, enquanto um dos bezerros desinteressado dos úberes da mãe insistia em sair das cortes para ir correr elas ruas. E esta espuma toda transforma-se em natas.
Devem ser boas. Daqui por umas semanas, quando as águas fizerem os moinhos da aldeia trabalharem a grande velocidade, teremos farinha milha moída bem fina para se fazerem as filhoses.

5 comentários:

  1. Parece que as filhoses ficaram a cheirar a Barroso.

    mário

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  2. Mas não se aproveitava mesmo o leite dos primeiros dias? Este leite, o colostrum, tem características muito particulares do ponto de vista gastronómico (além de ser essencial para o vitelo, mas normalmente chega para ele e para a cozinha também) e é a base para uma iguaria sueca muito apreciada, kalvdans ou a dança do vitelo.

    http://en.wikipedia.org/wiki/Kalvdans

    Parabéns a um blog belissimo e muito interessante! de uma nova leitora.

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  3. Obrigada a todos pelos comentários. Thank you Tera :)
    Anna: os dados apresentados referem-se apenas à(s) pessoa(s) em questão. Acredito que cada casa terá as suas práticas e que irei encontrar mais variações sobre este assunto.
    Também já tinha recolhido informação semelhante em relação à preparação caseira de manteiga numa casa na vila de Salto. O primeiro leite, amarelo, o leite dos primeiros dias, era rejeitado e atirado aos porcos. Só depois se começava a aproveitar o leite para consumo da casa.Obrigada pelo link :)

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  4. Parabens pelo blog! Uma homenagem merecida, enorme a gentes de muito saber.

    O leite dos primeiros dias, colustrum, é liminarmente recusado pelas cooperativas/processadores (lactogal, p.ex.) por exceder os critérios de descarga celular (se não estou em erro) e microbiológica. Ou seja, é considerado um leite de baixa qualidade para a industria e penalizam fortemente os produtores que tentam diluir o dito na restante produção.
    Tradicionalmente este não é aproveitado pelo sabor muito forte e porque, diz-se, o risco de transmissão de doenças é maior.... mas é, regra geral, dado aos bezerros.

    A indústria não deve gostar por fugir dos parametros que o restante leite apresenta ( e que lhes convém para facilitar o processamento).
    Fui pesquisar um pouco mais, a principal razão devem ser as imunoglobulinas em grande quantidade.

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Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
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