segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

DO PATRIMÓNIO ALIMENTAR

Queimada galega na Feira Medieval de Chaves de 2008

A inclusão do património alimentar no domínio do Património Cultural Imaterial (PCI) é explícita no texto da Convenção para a Salvaguarda do PCI de 2003. Com efeito, no domínio das Práticas sociais, rituais e eventos festivos, uma das formas identificadas é a das “tradições culinárias”, enquanto que no domínio do Conhecimento e práticas relativas à natureza e ao universo, uma das áreas identificadas é a das práticas alimentares. A inclusão do património alimentar no domínio do PCI é um bom exemplo de como as fronteiras entre a materialidade e a imaterialidade são nebulosas, e as compartimentações entre uma e outra podem ser totalmente artificiais e estéreis.
Três anos antes da Convenção de 2003, Portugal, que só ratificaria o texto em 26 de Março de 2008, já havia demonstrado sensibilidade para reconhecer o valor patrimonial do que institucionalmente veio a chamar gastronomia portuguesa. Com efeito, em 2000, uma Resolução do Conselho de Ministros tinha considerado a gastronomia como valor integrante do património cultural português.
Mais: ainda em dezembro do ano 2000, no âmbito do Programa da Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade, a Comissão Nacional da UNESCO elabora uma lista indicativa de bens portugueses onde inclui a doçaria tradicional portuguesa.
Um ano depois, seria criada a Comissão Nacional de Gastronomia, instituída como órgão responsável pelo levantamento e qualificação do património gastronómico nacional. Com esta Comissão, pretendia-se intensificar as medidas de preservação, de valorização e de divulgação da gastronomia nacional. Importa também referir que é ainda no ano de 2001 que, na Lei de Bases da Política e do Regime de Proteção e Valorização do Património Cultural, é referida, a propósito dos bens imateriais, a especial proteção que devem merecer os modos de preparar os alimentos.
Em 2002 estabeleceu-se a criação de uma base de dados designada por Gastronomia, património cultural, que seria coordenada e desenvolvida pela Comissão Nacional de Gastronomia. A esta Comissão cabia, também, a delimitação de dez regiões gastronómicas, cujo objetivo seria o de contribuir para a organização regional e nacional dos concursos Gastronomia, património cultural. No entanto, a Comissão Nacional de Gastronomia seria extinta em 2006, no âmbito do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE).
Não se pode, contudo, considerar recente esta preocupação com a preservação dos patrimónios alimentares regionais. O período do Estado Novo é rico em iniciativas deste género. De facto, neste período verifica-se a valorização da diversidade regional e um intervencionismo estatal que procura promover a produção alimentar portuguesa no exterior e o seu consumo no interior, assim como desenvolver o turismo.
Com uma matriz tradicionalista elevada a política cultural, os patrimónios alimentares são sujeitos a processos de recriação e invenção e exploram-se os regionalismos do país para justificar a nova divisão administrativa. O Secretariado Nacional de Informação lidera esses processos pela via dos concursos gastronómicos regionais e nacionais e das ementas das Pousadas de Portugal. Aliás, as pousadas ilustram as preocupações nacionalistas que sustentam a política de desenvolvimento do turismo a qual era forjada a partir da valorização do que era codificado como sendo regional e nacional. As pousadas funcionavam, deste modo, como o perfeito cenário nacional/regional, onde às comidas regionais se juntava a baixela regional e o mobiliário e se enalteciam os produtos portugueses. Poucos anos antes, note-se, já havia quem dedicasse obra inteira, num registo folclorista, ao enaltecimento das doçarias regionais. Um dos melhores exemplos é o de Emanuel Ribeiro e do seu livro O Doce nunca amargou editados nos finais da década de 1920.
Mais tarde, a Rádio Televisão Portuguesa realizava em 1961 o Concurso de Cozinha e Doçaria Regional Portuguesa, a partir de milhares de receitas enviadas de todos os recantos do País que foram escolhidas segundo os critérios de representatividade e autenticidade.
Sintoma da importância dada ao património alimentar em Portugal é, também, o aparecimento das confrarias gastronómicas desde meados da década de 1980 (a mais antiga é a Confraria dos Gastrónomos do Minho, fundada em 1986), mas que se intensifica, sobretudo, a partir de finais dos anos de 1990, apostadas na preservação dos patrimónios alimentares, como se verá discutido no ponto seguinte.
Contudo, a existência de associações de índole gastronómica é muito mais antiga em Portugal. Referência incontornável é a Sociedade Portuguesa de Gastronomia, criada em Janeiro de 1933 pela mão do gastrónomo António Maria de Oliveira Belo (Oleboma) que se esforçou em nacionalizar a cozinha portuguesa. A Sociedade tinha como fim último: “Fazer ressaltar a cozinha nacional, melhorando-a, elevando-a ao lugar que deve ter, defendendo a cozinha regional e os produtos alimentares portugueses de primeira qualidade”, expressando a ideia da cozinha nacional como síntese das cozinhas regionais.  As preocupações de Oleboma parecem inspirar-se naquilo que se passava em França, ou seja, numa maior atenção dada às cozinhas provinciais, depositárias das tradições nacionais. A atenção dada a estas cozinhas, que já vinham despertando o interesse dos parisienses desde os finais do século XIX, teve tradução na criação de sociedades e clubes de cariz gastronómico, como o Club des Cent, um clube desportivo e gastronómico cujos membros, conhecedores e amantes da comida e automobilistas, percorriam as estradas das províncias em busca de lugares onde a tradição culinária tivesse sido preservada.
E pronto, vou fazer o meu sumo matinal de cenoura, maçã e laranja.

3 comentários:

  1. Aqui estou sempre a aprender.

    As pichorras são de Vilar de Nantes?

    Cordial abraço,
    mário

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    Respostas
    1. as pichorras são da terra de camões genuinas...
      hjoca

      olariaarte
      oficina do joca

      é so marcar e retratar ou ver demostrações
      um abvraço

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  2. As da foto? Não faço ideia. Aliás, nem sei se o ofício continua vivo por lá, mas é matéria para investigar :)

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Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
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