sábado, 4 de fevereiro de 2012

TRATADOS DO ESTÔMAGO


Bolinhos de millet


Ingredientes
1 chávena de millet e 3 chávenas de água (uso sempre esta proporção)
1 cenoura grande
1 colher de sopa de sementes de abóbora
1 colher de sopa de sementes de girassol
1 pitada de cominhos
1 pitada de cúrcuma
1 vagem de pimenta malagueta seca picada
sal qb
azeite qb
1 colher de sopa de sementes de chia demolhadas num copo de água
3 colheres de sopa de cebolinho

1. Numa frigideira larga colocar o azeite, as especiarias e, em lume médio, deixar frigir ligeiramente.
2. Juntar o millet previamente lavado e escorrido, a cenoura cortada em pedaços pequenos, as sementes de girassol e abóbora e deixar tostar um pouco mexendo sempre.
3. Adicionar a água e o sal e, em lume brando, deixar cozer até toda a água ter sido completamente absorvida (verificar se a água é suficiente para cozer o millet; por vezes, é necessário juntar mais um pouco de líquido).
4. Deixar arrefecer e juntar o cebolinho picado e as sementes de chia escorridas. Para escorrer a água em excesso das sementes de chia, usar um passador fino; aproveita-se a água gelatinosa que fica no passador já que a mesma funcionará como elemento agregador.
5. Moldar os bolinhos com as mãos untadas em azeite e levar ao forno até secarem completamente. Uso uma placa de barro para cozer e, como tal, não se torna necessário untar.

É muito provável que Berchoux nunca tenha ouvido falar destes bolinhos. Embora gostasse de escrever sobre gastronomia. O termo gastronomia, derivado do grego antigo (gastro ‘estômago’ + nomos ‘tratado’), foi usado pela primeira vez por Jacques Berchoux[1] no título de um poema: La gastronomie, ou l’homme des champs à table. Mas é Brillat-Savarin que ficou conhecido por ser o primeiro a definir o objeto da gastronomia.
“A gastronomia é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta. Ela atinge esse objetivo dirigindo, mediante princípios seguros, todos os que pesquisam, fornecem ou preparam as coisas que se podem converter em alimentos. (…) O assunto material da gastronomia é tudo o que pode ser comido; seu objetivo direto, a conservação dos indivíduos; e seus meios de execução, a cultura que produz, o comércio que troca, a indústria que prepara e a experiência que inventa os meios de dispor de tudo para melhor uso”.
Embora nesta definição não esteja explícito, o certo é que, na Fisiologia do Gosto, o entendimento da gastronomia enquanto excelência é transversal a toda a obra de Brillat-Savarin. Esta é, aliás, uma das leituras que se pode fazer do termo. Com efeito, nas referências ao termo gastronomia, são comuns expressões como “excelência culinária”, “criatividade culinária socialmente valorizada”, “arte de preparar refeições e de comer bem”, “arte de degustar os alimentos”, “estetitização da cozinha e das maneiras à mesa”, “perfeição da cozinha”.
A gastronomia aparece, deste modo, associada à prática de uma culinária elevada a arte e, embora as suas origens possam ser traçadas até aos gregos e em especial aos romanos, como fenómeno social moderno, ela surge na França do início do século XIX . Aliás, os franceses já tinham adquirido, entre os séculos XVII e XVIII, certezas quanto ao facto das suas maneiras de comer serem superiores às dos outros povos europeus.
Houve um conjunto de condições sociais, económicas e culturais que permitiram o aparecimento da gastronomia, não apenas enquanto prática culinária sofisticada, mas também enquanto texto literário. Desde logo, há que referir que foi apenas quando os fornecimentos de comida estabilizaram que houve necessidade de procurar novas formas de diferenciação social, a qual deixou de ser feita com base na quantidade de comida ingerida (até porque existem limites físicos para aquilo que se consegue comer) e passou a depender da adoção de outras formas relacionadas com a delicadeza e o auto-controlo. Com efeito, a abundância, a variedade e a disponibilidade imediata dos alimentos, juntamente com um esquema de produtores experientes (os chefs) que atuavam num lugar culturalmente específico (o restaurante), sendo ambos suportados por consumidores conhecedores e ricos, e uma tradição secular cultural (culinária), ou seja, a comida, as pessoas, os lugares, as atitudes e as ideias, constituíram os ingredientes que tornaram possível o aparecimento da gastronomia.
De importância fundamental para o desenvolvimento da gastronomia são os textos que representam um segundo nível de consumo (o primeiro nível de consumo corresponde ao ato de comer). Estes textos permitiram não só alargar o público muito para além dos consumidores e produtores imediatos, funcionando como agentes de socialização do desejo individual e redefinindo o apetite em termos coletivos, como também estabilizar um produto, efémero por natureza, que deve ser destruído para ser consumido: a comida.
Os gastrónomos Grimod de la Reynière, Câreme e Brillat-Savarin, fundadores da gastronomia enquanto género literário, não somente cultivavam o gosto refinado pelos prazeres da mesa, como também escreviam acerca disso - representavam a autoridade orientadora para uma segunda categoria de consumidores gastronómicos: os leitores. Mas se o discurso era autoritário, era também democratizante, pois os textos gastronómicos, juntamente com os manuais de etiqueta, permitiam o acesso de uma informação, que à partida era elitista, a um número crescente de indivíduos. Os textos apresentavam alguns temas centrais: 1) definição do que se considera correto em termos de composição de menus, sequência dos pratos, técnicas de serviço; 2) dimensão dietética, porque identifica os alimentos/comidas e as formas de os confecionar que se consideram corretas e saudáveis; 3) uma componente histórica, mítica, acerca da origem das comidas, das técnicas, dos seus nomes ou dos seus criadores; 4) evocação nostálgica de refeições memoráveis. Mas o modelo não era rígido, pois nem tudo o que se considera texto gastronómico continha estes quatro componentes.
Mas esta é apenas uma das leituras que se pode fazer do termo gastronomia. Um outro entendimento associa a gastronomia a uma prática culinária mais rural, o que é já visível nas cartografias das cozinhas regionais francesas dos finais do século XIX e no aparecimento das sociedades gastronómicas de cariz regionalista, fundadas por parisienses preocupados com a preservação dos costumes locais. A colagem do termo gastronomia a uma prática culinária mais popular vai ganhar um novo fôlego no período entre as duas Guerras, revelando-se nos guias gastronómicos que espelham o consumo turístico e que tem tradução explícita na secção gastronómica da Exposição Universal de 1937, em Paris, dedicada às cozinhas regionais das províncias francesas .
Em Portugal, o Estado Novo, através do seu aparelho de propaganda, valorizava as comidas da ruralidade, mas o termo gastronomia não era o mais frequentemente usado, bem pelo contrário. Uma consulta a dezenas de revistas Panorama do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, revela que os artigos relativos a essas comidas da ruralidade privilegiavam o termo cozinha portuguesa. Mais: apenas um dos autores (com apelido francófono) se refere, no título do seu artigo, à gastronomia do norte mas utiliza, ao longo do texto, termos como cozinha e culinária. Maria de Lourdes Modesto, duas décadas depois dos artigos publicados na revista Panorama, edita aquela que é, ainda, se não a principal referência, pelo menos uma das mais importantes da cozinha tradicional portuguesa. Na obra, precisamente intitulada Cozinha Tradicional Portuguesa, a autora assume “(…) um lento mas emocionante levantamento do património culinário português”, embora utilize, na introdução, o termo gastronomia. A colagem dos dois termos é feita, aliás, sem preconceito, mas é claramente o termo cozinha, adjetivada de tradicional, que domina. O livro também beneficiou dos milhares de receitas enviadas aquando da realização do Concurso de Cozinha e Doçaria Regional Portuguesa (emitido em 1961 pela RTP) e que permitiu à autora recolher “(…) milhares de receitas enviadas de todos os recantos do País, a maior parte com genuínas raízes locais”  escolhidas segundo os critérios de representatividade e autenticidade.
Pode, de facto, considerar-se que existe, atualmente, um entendimento mais democrático do que significa o termo gastronomia, deixando o mesmo de estar exclusivamente associado à alta cozinha ou alta culinária. Tal posição é defendida por Scarpato que distingue entre a gastronomia entendida enquanto prazer proporcionado pelo melhor da comida e da bebida, e gastronomia como dizendo respeito a tudo aquilo que se come e se bebe. O termo parece, aliás, ser eleito entre aqueles que se dedicam aos estudos sobre a rentabilização turística dos patrimónios alimentares locais e regionais, reflexo, ou não, de uma utilização crescente por parte, quer dos poderes públicos centrais, regionais e locais, quer das muitas estruturas da sociedade civil apostadas na preservação desses patrimónios, de que são o melhor exemplo as Confrarias Gastronómicas.


[1]  Berchoux aparece por vezes referenciado não como Jacques, mas sim como Joseph.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Acerca de mim

A minha foto
Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
Instagram

Seguidores