quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

DAS MEMÓRIAS DO CONTRABANDO EM CHAVES



Foi uma das mulheres que mais se recordou nas provas de doutoramento: a contrabandista Marquinhas. Conheci-a numa tarde fria de janeiro há quatro anos. Uma mulher com as mãos frias e os olhos quentes, quentes como os fornos transmontanos. Nasceu em 1938 na aldeia de Paradança, em Mondim de Basto, e aos dez anos foi emprestada a uma família de feirantes. É mãe de Lila, outra das mulheres que entrevistei. Dos avós maternos e paternos não tem qualquer lembrança. O pai, de Vila Nune, freguesia de Cabeceiras de Basto, abria minas de água para os lavradores e a mãe, de Fermil de Basto, Celorico de Basto, era empregada dos correios. Marquinhas teve nove irmãos. Quatro morreram sem ela os ter conhecido. Com os outros, pouco contacto teve ao longo da vida. Duas irmãs vivem ainda no Porto.
Por volta dos cinco meses, a família de Marquinhas muda-se para Padredo, localidade da freguesia de Canedo de Basto, do concelho de Celorico de Basto. Numa das idas à feira, uma conhecida feirante de loiças perguntou à mãe de Marquinhas se não a queria deixar ir trabalhar para sua casa. A mãe achou que a filha era muito nova, mas Marquinhas gostava de trabalhar e queria dinheiro para comprar um cordão de ouro. Tanto pedinchou e choramingou que os pais, tempos depois, acabaram por a deixar ir viver para casa dos feirantes em Guimarães. 
Se os primeiros dias foram difíceis de suportar, ao fim de um mês Marquinhas já se tinha adaptado. Havia três meninas e um menino lá em casa. No início, Marquinhas brincava uns dias e trabalhava noutros. Fazia as camas, lavava a loiça, descascava batatas. Aprendeu a cozinhar pelo buraco da fechadura. A cozinheira lá de casa, embora lhe destinasse certas tarefas culinárias, não lhe ensinava tudo. Mas Marquinhas tinha vontade de aprender a fazer rissóis, pastéis de massa folhada, croquetes e bolinhos de bacalhau. As chaves eram muito grandes e os buracos das fechaduras também. Espreitar era a solução. A casa só ia no Natal e na Páscoa. Não se importava. Andava mais limpa, mais bem vestida e tinha confortos que na casa dos pais não existiam. Quando Marquinhas tinha 15 anos, a cozinheira adoece e a patroa encarrega-a de cozinhar para a família. Ganhava 70 escudos por mês. Pediu um aumento e, como não lho deram, foi trabalhar para outra casa onde lhe pagavam mais 50 escudos. Aí ficou por três anos. Melhorou os conhecimentos culinários com a ajuda da dona da casa, mas também com as amigas cozinheiras de outras casas que com ela se juntavam ao domingo. Saiu desta casa para se casar aos 22 anos.
Com o marido, nascido em 1935 em Cabeceiras de Basto, foi viver para Arco de Baúlhe. Estiveram ali três anos. Durante esse tempo, ele tirou a carta de condução no Porto. O primeiro filho do casal morreu com meningite com um ano de idade. Depois, nasceria Lila. O emprego na Rodonorte traria a família para Chaves em 1963.
Marquinhas começou a trabalhar como criada aos dias e às tardes em várias casas particulares. Numa delas apenas cozinhava, nas outras fazia limpezas. Entretanto, nasceram os dois irmãos de Lila, um em 1965 e o outro em 1972. Mas os ganhos eram poucos e pediu ao marido para começar a vender nas feiras. Comprava fruta nos lavradores das aldeias em redor de Chaves e depois vendia na praça. Depois, começou também a vender frangos, galinhas e ovos. Diz que não queria que nada faltasse aos filhos e que foi uma negra de trabalho. Marquinhas iniciou-se, também, na compra e venda de terrenos e de casas. Os lucros conseguidos com os negócios permitiram-lhe comprar um carro, embora não tivesse carta pois não sabia ler nem escrever. O marido não lhe autorizou os estudos. Tinha medo que, com carta, a mulher lhe pudesse fugir. Mas Marquinhas queria dar mais conforto aos filhos. O contrabando parecia ser a solução.
Começou por contrabandear com a ajuda do marido. Depois, juntou-se com outras mulheres. Passava a fronteira em Vila Verde da Raia, atravessando o ribeiro a pé e, com o tempo, foi aumentando as quantidades da mercadoria contrabandeada, os lucros e as gentes que trabalhavam para ela. Chegou a ter a seu cargo mais de 70 pessoas. O filho mais velho também a ajudava na fronteira, mas a Lila nunca foi permitido trabalhar no contrabando a não ser na receção das mercadorias em casa. O dinheiro acumulado permitiu-lhe fazer a casa onde agora vive com o marido. Construiu, também, um espaço onde fez o pequeno mini-mercado. Diz que era para disfarçar o contrabando. Com um comércio aberto, ninguém ligaria tanto às carrinhas sempre paradas à porta da sua casa. Aos cinquenta e quatro anos, a diabetes que a pôs quase cega obrigou-a à reforma. Diz que poderia ter ido mais longe, muito mais longe, se tivesse aprendido a ler e a escrever. Vive com o marido na freguesia da Madalena. Nas casas ao lado da sua, vivem os filhos.
As análises ao contrabando estão frequentemente centradas nas populações rurais encostadas à linha de fronteira que complementam a atividade agrícola com a prática do contrabando no sentido de suprir carências. Mas os relatos de Marquinhas mostram que essa prática agregava, igualmente, as pessoas da cidade. O bacalhau assume uma centralidade nessas práticas do contrabando de comida, situando Chaves numa escala global. O gadídeo entrava às toneladas pela fronteira de Chaves e era depois vendido para comerciantes de todo o país. O marido de Antónia, outra das minhas informantes, justificava, de forma jocosa, a importância de Chaves nesse comércio ilegal:


O meu marido sempre esteve ligado à agricultura, mas logo após o 25 de Abril foi nomeado Secretário de Estado para as pescas. Quando isso aconteceu, houve uma jornalista da rádio que lhe faz uma entrevista e que pergunta como é que um homem da agricultura vai para as pescas e que conhecimento é que ele tinha em termos de pescas, ele que até era oriundo de uma cidade do interior. Olhe, sabe o que ele lhe disse? “Chaves não tem mar, mas tem o maior porto pesqueiro do país”. E a jornalista pergunta: “Como, se não tem mar?”. E ele respondeu: “Porque passa por lá todo o bacalhau que o país consome!”. Por causa do contrabando! (Antónia, 13-7-2008)
O relato de Marquinhas, que passou por conta própria e foi patroa de contrabando organizado em Chaves, revela uma realidade perigosa mas aliciante, fundada na fuga ao pagamento dos direitos de alfândega, feita de tempos noturnos (porque à noite era mais fácil iludir a guarda), de redes sociais alargadas, de solidariedades femininas e masculinas do lado de cá e de lá da fronteira, de compromissos e corrupções, de ilegalidades mais ou menos aceites, num tempo anterior à entrada de Portugal na CEE, em 1986.
A primeira vez que Marquinhas se confrontou com o contrabando, foi a pedido de umas mulheres que a conheciam e que na Galiza lhe pediram para ela trazer umas mercadorias para Chaves. O dinheiro que lhe deram pelo favor prestado levou Marquinhas a considerar as vantagens do contrabando.
Uma vez fui a Espanha buscar um bocadinho de bacalhau e um garrafão de azeite só aqui para casa. Estavam lá umas contrabandistas que me disseram: “Ó tia Marquinhas, podia-nos levar umas colchas na sua carrinha que ninguém desconfia, porque não é conhecida”. E eu trouxe um embrulhito de bacalhau e mais umas coisitas escondidas na carrinha. Elas à noite vieram buscar aquilo e naquela altura deram-me duzentos escudos. E eu disse assim: “Ai, não quero nada, eu trouxe por trazer, não tem nada que me dar”. “Não, a senhora trouxe também tem de ganhar algum”. E eu pensei: “Caramba, para me dares duzentos escudos, quanto não ganharás tu?!”. (Marquinhas, 24-1-2008)
Iniciou-se então com a ajuda do marido, mas depois, na companhia do filho mais velho, ganhou autonomia.
Primeiro, comecei a vender uns chocolates, umas garrafas de azeite, de óleo, assim umas coisitas, a pessoas particulares. O meu marido fazia a carreira de Vilarelho, dormia por lá três noites, ia a Espanha e trazia algumas coisinhas. Eu nunca tive carta de condução, porque o meu marido nunca ma deixou tirar, e mesmo quando comprei o primeiro carro, era ele que conduzia. Mas depois comecei eu a ir. Olhe, a primeira vez, disse ao meu marido: “Olha, vou a Espanha ver o que se possa trazer, porque anda lá tanta gente a trabalhar”. E ele disse: “És maluquinha, mulher, nem penses nisso, não vais nada! Ainda para perderes o pouco que temos”. Mas fui. Naquela primeira vez, eu e o meu filho mais velho trouxemos logo um saco de feijão. O saco tinha 40 quilos. Dividi para mim, para o meu filho e para um miúdo que vivia connosco. Fiz três farditos de feijão. Lá em Espanha. A gente dividia para se poder transportar e não ser o peso só para um. Passei aquilo e passei muito bem. Fui buscar outro. Passei a mesma coisa. Naquele dia, passei três sacos de feijão, de 40 quilos cada um. Correu muito bem, cheguei cá e enchi os sacos para se vender. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
As passagens na raia húmida eram feitas de dia e de noite. Mas a noite, pela maior cobertura que dava aos contrabandistas, era o tempo preferido para a passagem clandestina de mercadorias. Marquinhas integrava-se numa rede feminina de contrabando, partilhando os fretes dos carros de praça e os perigos da empreitada.
No início trabalhava sozinha com o meu filho. Mas ia junto com outras mulheres até à fronteira. Íamos na carreira ou no carro da praça às quatro ou cinco para dividir o frete por todas. Um carro só para uma pessoa ficava caro. Quando o carro ficava cheio de mercadoria, vinha só uma trazer as coisas para não se perder tempo, mas trazia a mercadoria de todas. Ou então deixava lá na fronteira um filho meu e um miúdo que tínhamos cá em casa. Eu vinha a casa trazer a mercadoria e, enquanto isso, eles iam a Feces a trazer mais coisas até ao sítio onde a gente carregava os carros. Outras vezes vinham eles a casa e eu ia a cima trazer carga para outro carro. Havia taxistas que já estavam ali sempre à espera que a gente viesse. De noite ou de dia. Na fronteira tínhamos de atravessar o rio a pé. Ainda conheço o sítio. Ai, passar o rio, ai Jesus. Ai Jesus, Jesus, o frio! Se agora estou aleijada…A gente nunca trazia meias ou então cortávamo-las à frente, nos dedos; puxava-se a meia calça aqui para cima, limpávamos os pés ao passar o ribeiro, com o lenço das mãos tirava-se a maior água, tornava-se a puxar a meia para baixo e caçava-se com os dedos na frente. Às vezes até tínhamos que esfregar as pernas que até se adormeciam. Nunca tive medo, nem nunca estive doente! E outras vezes tínhamos que passar às costas dos homens, porque o rio era muito grande. Durante três anos ainda passei o rio a pé. Tanto fazia ser inverno ou verão. Lá fui andando, comecei-me a habituar com aquele ambiente. Andei ali dois anitos assim. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Marquinhas trazia azeite, óleo, ananás e pêssego em calda e ananás fresco, cobertas e algum bacalhau. Depois começou a contrabandear cebolas, feijão, nozes e uvas passas e louças. Houve um ano em que vendeu milhares de quilos de presuntos trazidos de Espanha. Muita gente de Chaves andava no contrabando.
Éramos às 50 pessoas ali ao mesmo tempo, homens e mulheres. Eram bichas de pessoas. Aqui havia muita gente a fazer contrabando. Era uma parte de Chaves que fazia contrabando, uns de noite, outros de dia. Acho que havia mais de 1000 pessoas a trabalhar no contrabando. Ia-se lá buscar, porque dava lucro para a gente aqui vender. (Marquinhas, 24-1-2008)
Aos poucos, Marquinhas começou a arranjar pessoas que trabalhassem para ela. Transformou-se em patroa. Entre aqueles que tinham gente a trabalhar para eles, havia um acordo em relação aos preços a pagar por cada tipo de mercadoria. E esse acordo não se quebrava.
Comecei a juntar pessoal, cheguei a ter 70 e tal pessoas que trabalharam para mim ao mesmo tempo. E depois aquelas 70 e tal pessoas iam trazendo os embrulhos, conforme podiam. As pessoas que trabalhavam para mim eram todas do concelho de Chaves, ali de Faiões, de Santo Estêvão, das aldeias da fronteira, mas da cidade tínhamos muitas pessoas, mulheres, homens, canalha, grandes e pequenos. Estava tudo! Só não trabalhou quem não quis. Havia uma tabela de preços para cada mercadoria. Para bacalhau era 25 escudos o quilo, se fosse o grande era 30 escudos. O bacalhau pequeno custava 250 escudos o quilo e o grande já custava 300 ou 400 escudos, conforme. As bananas eram 150 escudos cada caixa. A caixa tinha 12 quilos. O feijão não estou bem certa, mas acho que eram 10 escudos o quilo, as cebolas, sete escudos e meio, os presuntos já não lhe sei dizer, só foi um ano. As latas de ananás eram quatro ou três escudos cada, mas já não estou certa. O azeite dava-se 10 escudos por cada garrafão de cinco litros. Era uma tabela certa, para toda a gente. Quando se fizesse um preço, ou que se aumentasse, o preço era igual para os trabalhadores todos. Com a gente que tinha pessoas a trabalhar para elas, combinavam-se os preços para não haver problemas. A gente pagava a todos o mesmo. Igual. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
A partir do momento em que Marquinhas começou a ter gente a trabalhar para ela, deixou de passar a fronteira com a mercadoria às costas. Se de início comprava pequenas quantidades de mercadorias a comerciantes que tinham lojas em Feces, depois passou a ir a Verin adquirir quantidades maiores de produtos, sobretudo de bananas e de bacalhau. O contrabando obrigava a toda uma logística já montada na parte espanhola. Uma comerciante galega de Feces fazia, do lado de lá, o contraponto a Marquinhas. Guardava no seu armazém as toneladas de mercadoria que Marquinhas tinha encomendado em Verin e controlava as saídas de bacalhau, bananas e outras mercadorias para o lado de cá. Essas solidariedades transfronteiriças eram incontornáveis para garantir o sucesso da empreitada.
É a tal coisa, comecei com três ou quatro, mas a mim fazia-me falta a mercadoria e às pessoas fazia falta o trabalho. E vinham aqui pedir para trabalhar para mim. Se eu precisava dizia: “Trabalhe, sim. Vá à M., carregue, aponte aquilo que traz, que ela lá aponta também e eu aqui também”. Eles iam e eu ficava do lado de cá com o carro de praça à espera. O meu filho mais velho ainda trabalhou muito, muito, muito comigo. Daqui lá são 11 quilómetros. Nós saíamos um bocadinho antes da fronteira. Depois andávamos três, quatro quilómetros, nem isso, para passar até Feces. Fazia-se a pé. Por andarmos lá tantos, até se faziam caminhos no chão. E depois tornávamos a vir. Ia só um chamar o carro, enquanto os outros ficavam escondidos. Os carros estavam parados num café, na fronteira. Lá lhe fazia sinal que eles já estavam avisados. O carro ia ao sítio para carregar, que havia muitos sítios para carregar. Havia caminhitos no meio do pinhal para irem os carros, de tanto passar por lá. Depois, deixei de ir à fronteira. Mandava trazer as coisas e estava aqui a tomar conta do descarregar, do carregar. Depois comecei a ir a Verín comprar grandes quantidades. Ou ia de camioneta, ou num carro de praça com outras que também iam comprar mercadorias, ou no carro de colegas. Com o meu marido era raro ir, que ele não gostava de se meter nestas coisas. Fui muitas vezes sozinha. Fazia o negócio, ficava tudo comprado. Depois os espanhóis traziam para Feces e em Feces a mercadoria ficava guardada num comércio, e depois nós é que fazíamos a passagem para cá. As louças, o azeite, o óleo, feijão, cebolas, bacalhau, bananas, essas coisas assim. Bacalhau era às toneladas que se comprava, e bananas era sempre aos 5 mil quilos de bananas, ou 10 mil quilos, conforme as encomendas que tivesse. O bacalhau punham-me aos embrulhos de 12 quilos e meio, que era quanto pesava cada fardo. A M., lá no estabelecimento, entregava e assentava o nome e as mercadorias, e eles também assentavam no papelinho deles e eu chegava aqui e assentava o que eles traziam. Confirmava com todos, porque eram muitos. Para saber o que perdiam, porque muitas das vezes eles perdiam às 50 caixas, porque eram apanhados pela guarda. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Marquinhas, embora se fizesse acompanhar pelo filho mais velho, não permitia que a filha, Lila, a acompanhasse nas viagens do contrabando. Embora andassem mulheres no contrabando, Marquinhas considerava que devia proteger a filha dos riscos que estavam inerentes à prática de andar a passar mercadoria na fronteira. Isso não significa que a Lila estivesse totalmente arredada do negócio, pois ficava na retaguarda, em casa, a receber as mercadorias. Passar a linha de fronteira com mercadorias contrabandeadas tinha os seus perigos. Isso não impedia que homens, mulheres, rapazes e raparigas e mesmo crianças o fizessem, mas existia uma linha de corte, no género, que revelava atitudes mais ou menos afoitas. As mulheres, se capturadas pelos guardas de um e de outro lado da fronteira, mostravam-se submissas. Perdia-se uma carga, mas não se arriscava a vida. Os homens reagiam e arriscavam muito mais serem atingidos a tiro. As mercadorias eram transportadas às costas na passagem da linha de fronteira, os pés metidos na água, mas do lado de cá havia os carros de praça, carros e camionetas particulares e motociclos, para depois dar fuga. As camionetas com maior capacidade eram utilizadas quando as cargas eram consideráveis. Mas o contrabando exigia também que os guardas de fronteira, portugueses e espanhóis, fossem devidamente corrompidos, com mercadoria ou com dinheiro. Os guardas deixavam passar uma parte e apreendiam outra. Combinavam-se quantidades e preços.
Tive muitas peripécias. A gente passava noites e noites à espera dos rapazes que traziam em motas, em carros, e eu tinha que estar a tomar conta. Umas vezes ficava a minha filha, umas vezes ficava eu. Vinha um, trazia dez caixas, vinha outro, trazia vinte. Ainda foram uns quinze anos de contrabando. Eu nunca parava, de dia e de noite. Andava a gente sobressaltada. Nunca dormia um sono normal. Cansei-me tanto! Toda a gente sabia que eu fazia contrabando, mas depois a gente paga a dois ou três guardas e pronto…mas estes, para não ficarem mal vistos pelos outros, também de vez em quando têm de fazer uma apreensão. Se passa um mês, passam dois, passam três e não tiram nada a mim, há coisa. E para o prejuízo não ser tão grande, avisavam que vinham. No contrabando, houve gente que morreu, três pessoas. Por acaso, nenhuma trabalhava para mim. Foi uma questão de sorte. A guarda atirava. Nunca vi nenhum a morrer, mas houve uma vez em que sentimos os tiros, fugimos logo para outro lado, nunca pensando que tivesse acertado. Mas daí a um bocadinho já se sentiam os gritos. Foi um homem que morreu. Às mulheres também atiravam mas nunca era tanto, porque a gente não resmungava. Mas os homens diziam-lhes “Vocês são uns gatunos, vocês isto, vocês aquilo”. Nós caladitas…no grupo em que andava, nunca atiraram tiro nenhum. Mas, uma vez, fui com o meu filho mais velho carregar uma camioneta de carga. Carregámos no lado de cá da fronteira. Falei com dois guardas e um disse: “Ó Marquinhas, dá-me 50 contos e vai lá carregar as camionetas que quiser toda a noite”. E eu disse “Mas veja lá, que não haja problemas”. “Não há, eu responsabilizo-me por isso”. E nós fomos. Eu chamei o pessoal para trabalhar naquela noite. Duas carradas trouxemo-las muito bem, mas a terceira…pumba, apareceram outros guardas com que eles não estavam a contar. E como nós tínhamos ordem para arrancar, continuámos, mas eles mandaram sete tiros à camioneta, aos pneus, e furaram os pneus todos. Ficou a camioneta no meio da estrada. Eu tinha ido num carro, na camioneta ia o meu filho. Eu senti aqueles tiros e fui para o sítio onde estava a camioneta! “Ai, meu Deus! Vamos ver o que é que se passa!”. Quando cheguei à beira da camioneta, vi que estavam os pneus furados e estavam guardas, os que tínhamos combinado e outros. Os que estavam combinados diziam “Peça-lhe a ele, e se ele lhe der ordens…por nós…”. O outro dizia “Peça-lhe a ele”. Ali andei, como uma boneca de um lado para o outro, mas lá conseguimos trazer a camioneta. Tive muita sorte, mas também sabia falar com eles. Houve uma altura em que o capitão nos apreendeu uma mercadoria, uma carrinha cheia de mercadoria que levava a fatura, mas ele lá se apercebeu que a fatura já não estava como devia ser, que estava com aldrabonadas. O meu marido foi comigo, porque o senhor da camioneta telefonou logo a avisar que estava preso. Quando chegámos, o meu marido alterou-se “Vocês ainda são mais gatunos do que nós, mais contrabandistas!”. O capitão disse para os guardas: “Vocês, quando os encontrarem com alguma coisa na estrada, tirem o que puderem”. Não gostou das palavras do meu marido. Tudo sabia, mas tudo estava caladinho. Passados 15 dias apanhou-me com três carros carregados. Vínhamos de Feces para cá, carregámos o primeiro carro, vinha muito bem, carregámos o segundo, aparece ele, carrego o terceiro, ainda estava parado connosco. Ele disse: “Dona Marquinhas, aquilo que disse ao seu marido, é aquilo que a senhora vai pagar”. Eu comecei a chorar e disse: “Ó nosso capitão, eu não tenho culpa nas asneiras que ele faz, nem que ele diz, porque se fosse um filho, eu dava-lhe umas chapadas e educava-o à minha maneira, mas o marido não posso. O nosso capitão compreende que se a sua esposa fizer uma asneira grande, o senhor não a vai matar por causa disso. Têm de se compreender um ao outro da melhor maneira”. E ele disse: “O que vale à senhora é que sabe mamar na mãe e na cabra alheia. O que lhe vale são as suas maneiras de falar”. E deixou-me ir, tirou-me um carro, mas deixou-me vir com dois. Ele ficou com a mercadoria, mas para levar para a fronteira. Ele tinha que dar baixa das coisas na fronteira. Muitas vezes eles retiravam para eles e vendiam, tudo beneficiava conforme se podia. Toda a gente sabia, mas eles, os guardas, ganhavam tanto como eu. Mas nunca, nunca, graças a Deus, fui presa. Eu até cheguei a ter os carabineiros a trazerem-me carradas e carradas de coisas. Às vezes chegavam aqui com o jipe carregadinho de bacalhau ou de bananas. Mas eles também ganhavam o deles! De qualquer maneira, dava sempre jeito, porque a mercadoria vinha mais direitinha e a gente metia sempre o melhor produto. Porque eles nunca perdiam nada. E as pessoas que vinham a pé perdiam muitas vezes. Roubávamo-los sempre um bocadinho! Se fosse bacalhau, roubávamos sempre 100 quilos. Traziam 500 quilos e a gente só pagava a passagem de 400. A gente metia no jipe 500 quilos de bacalhau e dizia que eram só 400. Porque eles cobravam o frete deles. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Com o dinheiro gerado pelo contrabando, Marquinhas comprou um terreno em Chaves e construiu uma casa, e mais tarde, abriu dois comércios para disfarçar o vaivém de mercadorias contrabandeadas. Vendia para Chaves e para o resto do país.
No comércio vendia as coisas que comprava nos armazéns retalhistas aqui de Chaves, mas certas coisas do contrabando que podia vender aqui, também ia vendendo. Mas as coisas do contrabando eu amontoava e vendia em Chaves, a casas muito grandes que havia aqui, armazenistas, Campo e Gado e a Socidal, e a comerciantes de toda a parte do país. Do Porto, de Guimarães, de Fafe, de Lisboa, de Coimbra. Tinha mais do norte do país. Havia comerciantes com casa aberta e havia muitos que nem casa aberta tinham nem armazém, mas levavam as cargas e entregavam naquelas casas, eram só transportadores. Também vinham aqui muitos feirantes comprar para vender nas feiras. Ouviam dizer que eu tinha mercadoria, porque lhes indicavam o meu nome. Eu também quando não tinha, dizia: “Olhe, vá a casa de tal que deve ter”. E começou-se aquele movimento assim. Depois comecei a ficar com o contacto das pessoas e começaram a encomendar: “Quero 2000 quilos de feijão, ou de cebolas, ou de bacalhau” e a gente ia carregando e quando tinha a carga feita, telefonava-se e a pessoa vinha e carregava. E já deixava outra encomenda. No meio tempo, já vinha outro que já queria isto, já queria aquilo. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
A permanência das mercadorias no armazém obrigava a toda uma engenharia de faturas usadas uma e outra vez para permitir a circulação, sem que as mesmas fossem apreendidas pela Guarda Fiscal.
Para termos as coisas no armazém, eu precisava de faturas. Então tínhamos que ir arrematar nos leilões as coisas que tinham sido apreendidas. Os guardas da fronteira avisavam-me que ia haver uma arrematação, que vinham lotes para o tribunal de Chaves, às vezes às 200 caixas de bananas, às vezes 200 ou 500 quilos de bacalhau. A gente comprava 1000 quilos, mas vendia 10 ou 20 mil quilos. As quantidades que tínhamos no armazém tinham que ser iguais às quantidades das faturas das arrematações. Mas se essa fatura não fosse apanhada pelos guardas quando se fazia o transporte das mercadorias, servia muitas vezes. A gente vendia às 500 caixas de banana por dia, o bacalhau chegava a vender aos 3 mil quilos por dia. Os comerciantes vinham aqui buscar a mercadoria, a gente passava a fatura e se, no caminho de volta, aquela fatura não fosse apreendida pelos guardas, os comerciantes chegavam ao destino, avisavam que já não havia perigo e depois passávamos outra fatura com os mesmos números, as mesmas coisas, às vezes cinco, seis ou vinte vezes. Quando se passava Fafe, já não havia problema, porque só os guardas daqui é que percebiam como a gente fazia. Quando a mercadoria chegava ao destino, os homens traziam outra carga de Espanha, ou outras vezes tínhamos escondida a mercadoria noutros sítios. Outras vezes ia eu levar a mercadoria. Tinha dois ou três fregueses que me pagavam bem, e lá ia com o meu marido ou com um senhor e a mulher dele numa carrinha de caixa aberta. Para levar a mercadoria, eu ia sempre até Vila Pouca de Aguiar que era a zona mais perigosa. Eu ia num carro de praça à frente, para ver se havia polícia, e a mercadoria ia depois nas carrinhas. Eu ia comunicando: “Pode vir até tal sítio”; “Fuja, esconda-se que estão aqui!”. Já havia telemóveis. O primeiro telemóvel que comprámos para o carro, custou 550 contos. Era tão grande que parecia uma mala! Eram dois aparelhos. Um ia no carro de praça e outro ia na carrinha e comunicávamos um para o outro. Já tínhamos sítios certos para parar na estrada à espera das indicações de quem ia adiante. E às vezes fugíamos. Uma vez, quase meti a carrinha dentro de uma igreja! A fugir da polícia! Foram dar connosco quase metidos na igreja! Fui apanhada muitas vezes. Mas nunca me prenderam! Mas fui muitas vezes a tribunal por causa dos papéis, das faturas e por causa dos rapazes que trabalhavam para mim, que às vezes ficavam com as motas presas. (Marquinhas, 24-1-2008 e 13-2-2009)
Apesar dos perigos  que correu, dos prejuízos e do desgaste físico que lhe abalou a saúde, Marquinhas faz um balanço positivo do contrabando.
Compensou o trabalho, os sustos, as aflições e tudo. Ainda deu para eu fazer as casitas, e se não fosse o contrabando ainda hoje não tinha um barraco. Se soubesse ler e escrever, eu tinha-me defendido bem melhor na vida. As pessoas que trabalhavam para mim, porque muitas vezes perdiam caixas e caixas e eu não assentava logo, porque não sabia, punha os números mal, confundia este com aquele…e quem perdia era a Marquinhas. Depois fiquei doente, depois desses anos todos a trabalhar como uma moira e o médico reformou-me. Tive que deitar os comércios abaixo que não podia ter nada em meu nome. Foi há 15 anos. Tinha 54 anos. (Marquinhas; 24-1-2008 e 13-2-2009)

4 comentários:

  1. espantoso. para nós, do litoral, e mais novos, é uma espécie de lenda.
    lembrou-me o que vi no museuzinho de melgaço.
    obrigada.
    Ana

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  2. Não, Ana, eu é que lhe agradeço. E o mérito é todo da D. Marquinhas :)

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  3. ;) que bons estes cheiros e estes sabores....
    parabéns pelo blogue. Já o divulguei:)

    e que tal uma página no Facebook?

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  4. Obrigada, anónimo :)
    Em relação ao Facebook, a verdade é que não tenho nem paciência nem tempo para "alimentar" outra ferramenta para além do blogue. Isto, dá-me gozo. Mais do que isto já me faz entrar no domínio das ralações :)

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