sábado, 10 de setembro de 2011

DO MILHO E DAS FILHOSES


D. Lúcia da Casa do Alípio. Tem os olhos cor de água e rosto de menina. Duas horas de conversa. A primeira de muitas que se seguirão. Sobre as filhoses. Lêvedas. De sangue. De orelheira. Também as há feitas com o colostro das vacas paridas. Aprendeu com a mãe. Mas, das seis irmãs - e eram doze filhos - ela parece ser aquela que mais gosto tem em fazer as filhoses.

Toda a vida se fizeram filhoses em casa da minha mãe. Aprendi com ela quando era pequenina. Ela gostava muito de fazer. Era muito filhoeira porque o meu pai gostava muito de filhoses. E ela fazia filhoses de tudo. Fazia todo o ano. Mas mais de inverno do que de verão.
As lêvedas levam farinha milha, triga para ligar, ovos, fermento, sal e água. Milho grosso, moído no moinho de água, muito bem moidinho. Antes, era o moinho dos vizinhos e nós pedíamos para ir moer. Já não trabalha. Tínhamos outro moinho mas levava horas para lá chegar com o pão à cabeça. Eu há uns anos comprei um moinho elétrico. É muito jeitozinho. Naquele tempo 58 contos. Não é grande nem pequeno. Mói devagarinho porque eu quero muito bem moidinho. Se for botado à fazenda, pode ser moído à vontade, se for para fazer o pão, as filhoses, deixo cair pouquinho e ele mói muito bem. São duas mós tal e qual de pedra como os da água. Nunca fez falta picá-las, nunca fez falta nada, já rompeu a cinta da roda de andar de volta, também já está farto de moer e nunca teve nenhuma avaria e mói que é uma maravilha. O milho é plantado por mim. Não tem qualidade de adubo, é tudo só o mato dos animais, é tudo natural, em nossa casa não pomos remédios, nem produtos. Os ovos são tudo caseiros. Um bocadinho de fermento. Antigamente usava-se o fermento do pão que amassavam em casa. Ainda hoje guardo fermento para cozer. Nunca se me estragou um fermento. Mas agora quando faço filhoses não boto desse fermento. Boto da padaria. O fermento de padeiro. Naquele tempo não havia triga para ligar, nem nada se falava, botava um bocadinho de centeia, para fazer a liga.
Boto primeiro a água morna para derreter o fermento e o sal. Tenho os ovos já batidos, duas dúzias ou três, os que forem. Pego no coador para coar os ovos porque gosto de os coar. Quantos mais melhor. Mais fofas ficam, mais amarelinhas, mais bonitas. E depois ponho a farinha milha à minha beira e à triga. Tudo ali à minha beira.
Elas são batidas só com um braço. Quando mais ficarem amassadas, melhor. Depois ficam ali a levedar. Faço a olho. Às vezes vão lá as mulheres e querem que eu diga quantos quilos botas de farinha, quantos ovos botas e eu digo que nunca pesei nada. Eu estou-as a fazer e vejo o que elas precisam.
Unto a sertã com um pinzelo. É um pano qualquer, mas eu escolho sempre um paninho que seja em algodão. Disto de fibras e destas coisas, não. Antigamente a minha mãe ainda lhes botava umas pinguinhas de banha. A outra gente era tudo só com banha dos porcos, mas a minha mãe, já naquele tempo misturava um bocado de azeite que não havia óleo. Azeite e banha. Hoje é só com óleo. Uso ali uma panelinha à minha beira com o óleo, que aquilo não gasta nada, gasta muito pouquinho e vou mergulhando o pinzelo e unto a sertã. E metemos a sertã à lareira e depois metemos as filhoses. Já está tão velhinha e foi o meu pai que a mandou fazer. Já tem muitos anos. Muitos anos. E faço com lenha, uma lenhinha muito boa, uma fogueira que tem que tem de ser uma fogueira muito certa, não pode ser grande nem pequena, ali muito certinha. Mas as minhas irmãs já preparam a sertã para fazer em cima do fogão. Já não têm pernas, agora está tudo muito mais moderno. Eu se fizer é na lareira. Dizem que até têm outro paladar, que sabem melhor.
As filhoses estão a levedar uma hora ou duas ou três. Logo que se dizem lêvedas, a gente começa a fazer.
As lêvedas faziam-se quando apetecia. A minha mãe era quando lhe apetecesse, fazia ali umas pouquinhas ali num instante. Para o sábado filhoeiro, para a segada e para a malhada, para a sementeira das batatas mas era a muito custo, porque era muito calor. Ela fazia-as de noite.
Ia um cesto de filhoses para a eira. Eram comidas aqui na eira. A minha mãe trazia um cesto de filhoses. Uma toalha de linho de volta do cesto e as filhoses ali no cesto e andava-se com o cesto à roda. Eu andava com o cesto a dar as filhoses aos trabalhadores. Eu com o cesto das filhoses, uma irmã minha com uma grande travessa de bacalhau, uma posta de bacalhau em cima da filhó, a caneca do vinho a dar-lhes vinho. Era dada ao fim. Nós tínhamos uma malhada pequenina e se calhar íamos malhar atrás de outro e o outro acabava ao meio-dia e dava o jantar. Nós íamos malhar atrás daquele e acabávamos à merenda. Filhoses, bacalhau frito e vinho e depois fritas. São aquelas…hoje chamamos rabanadas.
As filhoses de sangue eram na matança, nós matávamos os porcos no sábado, o porco desmanchava-se na segunda, arrumava-se e na terça já se faziam, não se guardava o sangue para velho. Era no tempo frio, nunca se estragam as coisas. Eram feitas com o sangue de dentro. O sangue de fora é quando se espeta a faca ao porco e ele sangra e aquele sangue vai coalhar, fica às postas e vai cozer para dentro de uma caldeira. Esse sangue era comido, chamavam-lhe o sarrabulho. Chamavam-lhe o sangue de fora. E o sangue de dentro, depois de abrir os porcos, aquilo vai correndo das outras carnes e depois aquele sangue era apanhado para uma panela e era coado, ficava ali naquela panela e depois a minha mãe coava-o para outra e botava-lhe farinha milha na mesma e fazia filhoses. Mas sem ovos. Antigamente ainda botavam um copo de água, que era para não ficarem tão densas, tão escuras. Ficam da cor do sangue. Há muito tempo que não faço. Aproveito o sangue para outras coisas, sangueira.
As filhoses de orelheira são feitas no Entrudo, com a água de cozer os pés e a orelheira. São feitas com farinha milha e bota-se três ou quatro ovos ou cinco que era para elas lidarem melhor. Quando vou fazer as filhoses de orelheira tenho de chamar a minha irmã mais velha porque se ela soubesse que eu as fazia e não dizia nada, ui meu Deus!
A minha mãe mandava-me dar as filhoses às vizinhas, àquelas pessoas que não faziam e que nos ajudavam. Tinha uns pratinhos e punha um paninho e levava. Ainda hoje se fizer despacho-as para os vizinhos. Eles são de mais idade, não fazem. Toda a pessoa gosta. Eu não sou senhora de fazer filhós nem de cozer pão milho porque parece que lhes chega o cheiro. As raparigas não querem saber e haviam de aprender a fazer filhoses e outras coisas. Sim, eu ensino-a a fazer.
:)

2 comentários:

  1. Olá Daniela! É um prazer ler o seu blog e desta vez não resisti comentar: que delícia de texto, que vida tão cheia de detalhes. Eu adorava "aprender a fazer filhoses e outras coisas assim"!Bem haja pelo seu projecto!
    csofiaroque@hotmail.com

    ResponderEliminar
  2. Olá Sofia(?)
    Obrigada pelo seu comentário. Mas fazer filhoses é fácil...tem é de se bater muito e ligar os sensores na ponta dos dedos para perceber quando a massa está no ponto :)
    Um tutorial para breve, se tudo correr bem. Está prometido :)

    ResponderEliminar

Acerca de mim

A minha foto
Sou uma antropóloga que só pensa em comida...
Instagram

Seguidores

Arquivo do blogue