segunda-feira, 29 de agosto de 2011

MALHO

Não sou, nem de perto nem de longe, uma essencialista em busca de um tempo perdido como se as comunidades tivessem, algum dia, vivido completamente isoladas do resto do mundo que as rodeava e como se fosse possível, ou melhor, desejável, cristalizar essas comunidades num tempo irreal, artificial e pouco dignificante para os indivíduos que as compõem.
Abundam, no entanto, essas estratégias de patrimonialização ancoradas a um histerismo folclorista pouco ou nada atento àquilo que as comunidades pensam de si mesmas. E querem. E o que pensam também nunca foi homogéneo. Muito menos o que querem.
Fazer antropologia é, para mim, e mais do que tudo, escutar as pessoas, independentemente daquilo que me dizem ser mais ou menos adequado ao que as instituições locais esperam que essas pessoas digam.
Se a D. Teresa de Paredes do Rio, que tem 81 anos, me diz que quando morrer o tear morre com ela eu não lhe posso dizer, assim do nada, que o tear tem de ser entregue a uma instituição para ser preservado, porque para ela, a sua finitude é também a finitude de toda a materialidade que a rodeia. E, em última instância, o tear é dela.
Para que a D. Teresa, que tem 81 anos, possa perpetuar-se na memória local, é preciso tempo. É preciso tempo para falar com ela. Para a levar a um museu e para ela sentir que a sua vida, o seu legado e a sua memória podem ser parte desse projeto museológico.
E isso demora tempo. Demora tempo para que as pessoas e as comunidades pensem os museus como espaços onde as suas memórias coletivas e pessoais possam ser dignamente tratadas. Porque a confiança não se constrói a partir de um fugaz encontro entre o poder local e as populações. É preciso tempo.
E, se no final, a D. Teresa não quiser doar o tear ao museu, por mais absurdo, até criminoso que isso possa parecer, eu só tenho de respeitar. A questão é que acredito que o tempo, o diálogo, o respeito, o conhecimento e a confiança irão permitir que a D. Teresa doe, de forma consciente, o seu tear a uma instituição que o preserve. E que preserve, também, as memórias pessoais e coletivas que estão associadas a esse objeto.

Não sou essencialista. É certo. Mas isso não significa que não me fascinem fragmentos sonoros e visuais que estão ancorados a um passado imaginado.
Como os penteados de algumas mulheres idosas, construídos a partir de longos cabelos aconchegados em tufos mais ou menos elaborados. De uma elegância intemporal. Talvez porque me façam lembrar os longos cabelos brancos da minha avó Jesuína que eu tanto gostava de pentear. Primeiro tirava-lhe os muitos ganchos que prendiam a banana. Depois, fascinada, espalhava aquela manta branca pelas costas e começava a escová-la, cuidadosamente. Finalmente, nunca conseguia reproduzir o penteado original e tinha de ser sempre ela a fazê-lo. Mas era um momento muito nosso. Da avó e da neta mais velha. Ainda que a minha relação com ela, a partir de uma certa altura das nossas vidas, não tenha sido particularmente feliz. 


Teresa de Paredes do Rio

Fascinam-me, também, alguns dos sons que estão ancorados a um passado mais ou menos distante. Mesmo que esses sons sejam resgatados para o presente através do folclorismo fácil. Como o som dos malhos a bater no centeio. Com aquela cadência grave que, combinada com o revolteio do pirtego no ar, parece um bailado na eira.

 
Malhar o centeio na eira - Paredes do Rio

Malhos


Narigota - "cabeça" em cabedal que envolve o cabo ou mangueira

 
Correia de apôr - correia que liga a mangueira, ou cabo, ao malho propriamente dito, também chamado de pirtego


Seguidoiro - "cabeça" em cabedal que envolve o pirtego

 
Brocha - tira em cabedal que envolve o seguidoiro e o pirtego

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